Entre as mais velhas

 

 

Não fui acostumada a estar entre as mais velhas. Filha caçula, quatro irmãs, penúltima e última neta, cresci olhando para cima e me inspirando nas mulheres mais velhas. Sempre foram elas, e não eles, que me fascinaram.

Numa família predominantemente feminina, não tinha a quem cuidar; era cuidada e paparicada.

Na escola, era das mais jovens das turmas. Ainda que entre as melhores alunas, ansiava por estar no lugar das mais velhas. Elas deviam saber mais do que eu sobre aquilo que mais me importava: como era ter aquela idade que eu nunca alcançava?

Pois o tempo passou e tudo mudou. Continuo mais jovem do que muitas, é verdade, mas já sou mais velha do que a maioria das que me rodeiam.

A sensação é estranha. Lembro de mim mesma quando observo os que me veem com aquela reverência que prestamos aos mais velhos. Mas não me reconheço como aquela que soube antes, que já conhece isso ou aquilo, que já viveu o suficiente para evitar aquilo outro, ou mesmo que já não corre determinados riscos.

Ser vista como mais velha me coloca sob uma perspectiva desconfortável. Não consigo sentir o prazer que pensei que sentiria. Não sinto que posso dar aquilo que esperam de mim. Não aprendi a aconselhar, a cuidar como mais velha, a ser exemplo.

Sentir-se mais velha quando se é mais velha não traz o prazer idealizado de quando se era jovem. Não sei se isso ocorre com todos ou se é porque não aprendi a ser mais velha, mas o fato é que a sensação de ser mais jovem está impregnada em mim. Ainda que meu comportamento mostre o oposto, estarei sempre atenta às mais velhas que me rodeiam, me perguntando se em algum momento no futuro também viverei suas experiências, mesmo que elas já não caibam mais na minha idade.

O lado bom dessa história é que aprendi muito cedo a respeitar as que vieram antes de mim e, mesmo muitos anos depois, ainda mantenho meu olhar voltado para elas, ansiando conhecer da vida tudo o que elas já descobriram.

 

Anelê Volpe, 2022

 

O Livro Mais Importante

 

            Desde sempre o menino percebeu a presença daquele livro grande, encapado em couro preto com letras enormes e douradas já sinalizando sua importância. Vivia aberto, mais ou menos ao meio, atravessado por uma fita vermelha e brilhante decorada com símbolos incompreensíveis para o menino. Não fosse uma quase imperceptível camada de pó cobrindo tanto a folha da esquerda quanto a da direita, poderia se dizer que alguém fez uma pausa na leitura daquelas letras miúdas gravadas em fonte delicada nas folhas mais finas que já se viu. Visto assim, aberto, chamavam a atenção do menino a contracapa de couro cor de sangue e o dourado refletido da base das páginas em conjunto. Curioso, já havia verificado que uma única página não produzia o mesmo efeito.

            O livro ficava num lugar privilegiado da sala da casa e na passagem entre os vários cômodos. Não havia um dia sequer que o livro não lhe chamasse a atenção. Ao lado do livro, um pequeno vaso com uma rosa artificial e um crucifixo que muito cedo lhe foi apresentado como o “papai do céu”, o que fez com que, por algum tempo, achasse que o céu também tivesse pai e mãe. Embora ninguém lhe apresentasse o livro, este era o maior dos três objetos, brilhava mais e lhe causava mais curiosidade.

            Quando o menino percebeu que era possível fechar o livro e, com a ajuda da fita, voltar a deixá-lo na mesma posição, passou a explorar o objeto com mais cuidado. Começou pela capa e foi quando descobriu o grande título dourado logo abaixo da pintura de uma jovem, um bebê e um velho. Ela e o bebê eram mais iluminados do que o velho e uma paisagem meio triste que lhes serviam de fundo. A ele lhe pareceu uma moça jovem coberta com uma túnica azul sobre uma peça branca indefinida – não parecia blusa nem vestido – cabelo escuro, que devia ser longo, dividido ao meio e preso com um lenço de cor indefinida. Dos olhos não soube a cor, pois ela olhava para baixo, para seu colo, onde havia uma criança robusta, branca, nua e de braços abertos, que por sua vez olhava para o alto. Concluiu que eram mãe e filho. Estranhou que mãe estivesse toda coberta e o filho descoberto e nu. Sentiria frio?, pensava sempre o garoto. Ainda assim o gesto do bebê não parecia pedir calor e aconchego; mais parecia se dirigir a algo que talvez visse acima da mãe, talvez no céu. O velho – seria o avô?–, ao lado e atrás deles, observava o bebê com uma expressão séria. Apesar de parecer menor do que ambos, era possível identificar sua barba farta e cabelos brancos cobrindo apenas a parte inferior da cabeça, e também parecia vestir uma túnica desbotada. Ao menino não ocorreu outro papel a ele do que o de avô. Talvez fosse para o pai, ausente ali, que o bebê pedisse colo.

            Ainda sem conseguir ler, descobriu no interior do livro várias figuras coloridas. Pena que nunca podia se demorar nelas, pois era proibido mexer no livro; temiam que o sujasse ou rasgasse. Isso ele entendia; só não entendia por que mesmo os adultos não mexiam no livro. Será que já o tinham lido inteiro? Não nessa sua vida! Um dia fez um teste: abriu o livro em outras páginas e aguardou. Ninguém reclamou. Isso o encorajou a desvendar seu conteúdo com mais liberdade.

            As figuras que via pintadas ora eram familiares, ora lhe estranhavam. Havia uma de que gostava muito. Uma paisagem bucólica com vários animais, todos dóceis, quietos, acomodados no gramado compartilhado com adultos e crianças. Naquele mundo, conviviam pacificamente bois, leões, cães, galinhas, cavalos, macacos, patos e outros que ele nem conhecia. Já tinha noção de que no seu mundo aquilo não era possível, e se perguntava onde ficava aquele lugar, e se ele um dia ia visitá-lo. Uma vez perguntou isso à mãe, mas a resposta foi incompreensível. Ela disse que o lugar não existia, mas existia, e que ele iria conhecê-lo, mas não nessa vida, e só se ele fizesse isso e aquilo e não fizesse aquilo outro, e eram tantas condições e contradições que o menino deixou pra lá. Com o tempo decidiu que era um livro de histórias como tantos outros que ele conhecia, com a diferença de que ninguém as lia para ele, e que teria que esperar para decifrá-lo depois.

            Outras pinturas, no entanto, o assustavam. Homens e mulheres, as vezes seminus, ora em posição de dor e sofrimento, ora em posição de adoração, sacrifício ou  luxúria, desfilavam pelas pinturas sem que o menino entendesse qualquer enredo. Depois a mãe lhe apresentou aos anjos, aqueles homens ou crianças com asas que apareciam sempre nos céus das pinturas. Mas não eram os únicos que estavam acima dos demais. Papai do céu também morava lá em cima, mas no livro ele era diferente: sempre muito velho, barba e cabelos longos e brancos. Diferente daquele vizinho do livro. O menino achou que poderia ser o mesmo, só que mais jovem. Não questionava, ainda, o fato de que a morte do mais novo o impediria de envelhecer.

            Uma vez por ano os acontecimentos descritos no livro eram lembrados por todos, ainda assim, o livro permanecia intocado. O menino chegou a procurar no livro o outro papai, o Noel, acreditando que fazia parte daquela história, já que era celebrado igualmente na mesma época. Achou que papai do céu poderia ser o próprio Noel, afinal, eram muito semelhantes. Mas só o encontrou mesmo na televisão e no supermercado.

            O menino cresceu um pouco, foi até fazer curso sobre o tal livro. Ficou entusiasmado no começo, mas logo percebeu que aquelas histórias, que tinham ocorrido em lugares distantes que já não existem mais, e há tanto tempo, não eram boas como as que lia em outros livros. Sofriam de falta de ação, de excesso de leis e regras, de crueldade injustificada, e de ocorrências espetaculares. Não que isso fosse problema para uma história; ao contrário, as que ele apreciava eram recheadas de ódio, sangue e efeitos especiais. A diferença é que enquanto essas eram fictícias, as do livro, diziam, teriam acontecido de fato. Foi aí que lhe ensinaram o que é a fé. Se ele acreditasse naquelas histórias e naqueles personagens, então tinha fé; senão, não tinha. Nunca lhe deram chance de dizer que não tinha fé.

            O menino complementava seus estudos sobre o livro lendo o mesmo em casa. Bem, essa era a intenção, mas não houve entusiasmo que durasse mais que alguns minutos. Era um texto muito difícil, repleto de nomes, de leis, pecados e castigos. E muitas palavras de amor também. Mas tudo isso era tão distante da sua realidade que logo viu sua curiosidade esmorecer.  E por muito tempo o menino se esqueceu do livro e de suas histórias. Deixou aquela casa muitos anos depois, e o livro permaneceu lá, provavelmente aberto nas mesmas páginas.

            O homem que se tornou voltou a pensar no livro muitas décadas depois. Com mais tempo de vida e de folga, decidiu comprar um livro daqueles para si. Finalmente iria desvendá-lo. Já não encontrou uma versão tão bonita quanto aquela, o que lamentou profundamente. Queria rever aquelas pinturas novamente. Queria encontrar novos sentidos para elas. Saberia finalmente interpretá-las corretamente. Encontrou apenas palavras e, sem ajuda das imagens, precisou muito de si mesmo para dar sentido àquelas histórias. Se ao menino ingênuo elas pareciam irrelevantes, ao homem experiente provocavam reflexões.

            O que acontece ao homem, que tem a sua disposição conhecimento, história, discernimento, arbítrio, e que não põe em prática o que sabe ser o melhor para si e para todos? Talvez porque seja o caminho mais difícil. Assim diz o livro, e nem precisava dizê-lo; assim mostra-nos a vida. Tudo isso pensava o homem e, estranhamente, sentia-se cada vez mais ligado ao livro. E se lhe perguntassem se tinha fé, já não saberia dizer. Talvez, não no homem, dissesse.

           

Anelê Volpe, 2021

 

 

 

Não me deixe partir

 

Não me deixe partir

Faça escândalo, esperneie, tranque a porta

Mas não me deixe partir

Não corra o risco de se arrepender

Pode segurar minhas mãos, meus braços

Ajoelhe-se e implore para que não vá

Finja culpa e peça perdão pelo o que não fez

Simule arrependimentos que não teve

Diga até que me ama

Mas não me deixe partir

Minimize meus dramas e valorize os seus

Esqueça de que quem quer partir é você

Ignore sua indiferença e peça para eu ficar

Não me deixe partir

Há um risco enorme de eu não voltar

Há um risco ainda maior de você nos esquecer

Nós dois estamos destinados a desacontecer

 

Anelê Volpe, 2022

 

Sob a Terra

 

            “Que escuridão é essa?” “Onde estou?” “E por que não ouço minha voz?”

            Foi assim que ela parecia acordar de um longo sono. Embora sentisse seus olhos bem abertos, nada via. Tentava se mover, mas era inútil. Gritava, mas não se ouvia. Tentou se controlar, respirou fundo, sentiu um cheiro forte de flor decomposta, de terra molhada e madeira. Pensou que ainda sonhava, procurou adormecer para acordar em outro cenário, fechou os olhos e tratou de pensar em coisas boas.

            Lembrou-se de viagens e momentos importantes para ela, filhos pequenos, grandes, netos, marido, pais, irmãos. Era o que fazia sempre que tinha dificuldade para dormir. Mas dessa vez foi difícil, pois não podia se mover e aquele odor era muito forte. Tentou se lembrar da noite anterior. Era difícil, havia muitas imagens misturadas e desconectadas. Sentiu cheiro de éter, gosto de remédio amargo, picadas nas veias. Teve maior dificuldade em respirar.

            Aos poucos foi se lembrando de uma agonia constante e crescente, do medo de morrer, da dificuldade em pedir socorro, das palavras de consolo que ouvia. Lembrou-se também do desejo de uma fé muito maior do que a sua, de se entregar para uma vida em outra dimensão, que fosse melhor e sem sofrimentos e arrependimentos.

            Especulou que já estivesse em outro mundo, e que esses momentos antecederiam à luz do lugar que seria sua morada eterna. Sentiu medo de não ser merecedora desse lugar e tentou recapitular os males que porventura tenha provocado. Tudo parecia tão irrelevante, tão pequeno, e ela não queria pensar nisso. Simplesmente aguardou.

            De repente lhe ocorreu que estivesse ali por engano; que, afinal, não era sua hora; dormia profundamente, mas não morria. Nesse momento, pareceu congelar – embora não sentisse calor ou frio – e pensou ter sido enterrada viva. “Como isso pode ter acontecido?” “Onde estavam todos, que não verificaram que eu ainda vivia?”

            Se conseguisse, espernearia, gritaria, choraria. Mas uma calma incrível a dominou. Perguntou-se se era mesmo seu desejo continuar viva, e ouviu-se dizer que talvez não, queria mesmo experimentar outras coisas.

            Teve todo o tempo do mundo para recapitular sua vida. Como foi feliz na infância! Viveu numa casa de vila com vários irmãos, pai, mãe e avós. Todos pareciam felizes. Na adolescência teve grandes amigas, alguns amores fugazes, grandes alegrias e várias decepções. Do casamento, eram mais fortes as últimas lembranças, de um relacionamento mais fraternal e menos romântico. Nenhuma grande paixão, tampouco uma grande desilusão. Dos filhos, lembrou-se da tarefa cumprida em criá-los e formá-los tal como manda o figurino. Para os netos, desejou boa sorte e concluiu que já não eram problema seu.

            Apenas cogitou a possibilidade de voltar àquilo tudo e não encontrou razão maior do que sua curiosidade pelo desconhecido. E decidiu ficar em silêncio absoluto para que não percebessem que ainda vivia. Achou que mais cedo ou mais tarde chegaria sua vez de ser chamada.

            Fechou os olhos já cerrados e aguardou feliz e pacientemente.

 

Anelê Volpe, 2021