Abrigo

 

 

Nossa mãe

fazia bolinhos de chuva

e não entendíamos

por que nessas ocasiões,

geralmente, o sol irradiava

festivo.

 

Nossa mãe fazia

curau

com o milho colhido na hora

nas plantações ao lado da casa

no pacato sítio.

 

Nossa mãe

cosia roupas

em sua máquina antiga

estrategicamente posicionada

próxima à janela

com vista para prováveis peraltices.

 

Nem sequer imaginávamos

que entre um afazer e outro

em nós procurava abrigo.

 

Ausência

 

 

Abraça-me

como o brilho ao cristal

que guarda dos lábios

                               as marcas

a saliva ainda em ebulição.

 

Abraça-me

como órfão ao destino

o beco ao fugitivo

que desprovido de perspectivas

                                admite o precipício.

 

Compartilharemos

do barco à deriva as velas

qual andejo com o nada

observadores atentos

                                horas e sentinela.

 

Abraça-me infinda madrugada

como um pai que ao filho espera.

 

O mel das salinas

 

 

1

 

Há de ser poesia:

 

as léguas intransponíveis

entre o vazio e Ohio

a solidão assumida

manuscritos num aquário

 

a anuência do abismo

baldeações às escuras

roteiros interrompidos

o inventário das ruas

 

a omissão do açoite

recortes de uma saudade

a destreza de uma dor

no sorriso – a inverdade.

 

 

 

2

 

Ao poema basta o descuido

de um amor desconstruído

a melodia do absurdo

do tempo procurando abrigo

 

a plenitude do afeto

a volúpia de um abraço

o noturno véu das esperas

a luz no porta-retratos

 

um pedaço de alvorecer

o enquadramento da lágrima

a irreverência do caos

naufrágios de um dia raso.

 

 

3

 

É tênue a linha

entre alma e retina.

Há de ser poesia

- o mel das salinas!

 

Portos, olhares e ausências...

 

 

Acalento olhares

como o solitário porto

ávido por embarcações

à deriva.

 

 

Dissimulo cantigas

num parto natural

que seduz e dá à luz

inexplicável melodia.

 

E portuário calejado

habito todas as ausências

que insistem em preencher

chegadas e despedidas.

 

Se    

 

 

Se eu disser que não leio Pessoa

que o abismo é refúgio

que o silêncio ecoa;

 

se inflar meu ego

num poema-bomba

provar o que nego;

 

na artéria insone

injetar morfina

proclamar teu nome;

 

e se, acima de tudo,

desfizer o nó

do rio que corre

na alma que morre?

 

Poesia é caos!

 

Terra firme destoa!                                                                                                                                                                             

 

 

Cotidiano   

 

O grilo saltita

sobre os escombros da

inerte tarde

- tritura o fastio.

 

Algumas nuvens formam figuras

que completam a paisagem

- que não vai além dos limites

do terreno baldio.

 

Nos fios da rede elétrica

inquietos pardais se acasalam

na instintiva perpetuação da espécie.

 

O homem-calendário tropeça no vazio.

 

Pétalas    

 

 

Nunca traias a ideologia

do poeta

 

- no jardim destruído

é o que lhe resta.

 

Alimenta-a

- com tua ilibada conduta.

 

Multiplica-a

- pétala a pétala.

 

Poente   

 

 

Quando o prego enferrujado

trespassou meu pé

na colônia da Fazenda Palmas

na, então, pequena Matão,

intuitivamente percebi

que a poesia seria inevitável.

 

O riso vespertino da incompreensão

estampado nas faces das outras crianças

soou prefácio

às malícias do mundo.

 

Ainda pude admirar

- meio à dor –

quão belo e promissor o

poente

dependurado nas paredes

daquelas translúcidas moradias

acenando para o nada.